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Alguma coisa vai acontecer

E de repente aconteceu a pandemia. O Covid 19 irrompeu e gerou comoção, medo, desprezo, teorias da conspiração, fanfarronices.

À pala da pandemia há quem queira, em nome de algo pretensamente superior (a segurança, a economia, os mercados) consolidar restrições às liberdades, aos direitos cívicos, aos direitos laborais. Tudo em nome do livre funcionamento do deus mercado e dos seus desígnios.

A verdade é que estas pretensões não surgiram com a pandemia. Estas pretensões já eram evidenciadas com as políticas seguidas por uma globalização desenfreada que provoca desigualdades, o aumento da pobreza, a concentração da riqueza num número cada vez menor de indivíduos, a destruição progressiva do planeta.

A isto juntemos os discursos de ódio – racista, homofóbico, misógino, xenófobo – que visam aprofundar divisões dolorosas e profundas existentes nas sociedades criando uma dicotomia (nós e os outros) com uma mensagem simples e de eficácia garantida. Todos os males do mundo vêm dos outros e daí que quem não é dos nossos é dos outros, logo contra nós.

Com o confinamento provocado pela pandemia constatamos, de forma inequívoca, aquilo que já uns quantos diziam, estamos a matar o nosso planeta. De facto, no período dos confinamentos a poluição diminuiu, aves e outros animais retornaram a locais dos quais tinham sido expulsos pela voracidade dos humanos.

Parecia abrir-se uma janela de oportunidades. Íamos ser diferentes e alguma coisa ia mudar. Ledo engano. Logo prevaleceram os interesses egoístas de sempre e bastou a retoma da normalidade para que os valores da poluição voltassem, também eles, à “normalidade” continuando a destruição da nossa casa comum como se os seus recursos fossem inesgotáveis, propriedade de uns quantos que os delapidam sem limites.

A pandemia não atinge todos por igual. Expôs mesmo as desigualdades gritantes existentes na nossa sociedade fruto das políticas seguidas. Falta de habitação condigna, falta de transportes públicos capazes de responder às necessidades, insegurança dos trabalhadores, precariedade laboral, quebra acentuada dos rendimentos do trabalho.

Salvou-se, a muito custo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) porque contra os que sempre têm defendido a sua menorização e até seu desmantelamento foi possível, com o esforço de todos os seus profissionais, fazer frente à voracidade dos negociantes do “quem quer saúde paga”.

É conturbado o tempo em que vivemos. As tensões sociais são enormes. Instituições diversas – partidos, igrejas, governos, comunicação social, organismos internacionais como a ONU – estão desacreditadas reféns de interesses financeiros presas ao dogma capitalista do “There Is No Alternative”.

A falsidade foi normalizada com o surgimento das chamadas “narrativas ou verdades alternativas” no discurso público seja ele político ou de outra natureza. Tudo para amedrontar os cidadãos, criar dúvidas, induzir comportamentos e tomadas de posição ou, em última instância, os paralisar e neutralizar.

Esta situação faz alastrar o descontentamento, a desconfiança nas instituições e abre o caminho para projectos populistas de contornos marcadamente fascizantes.

Enquanto isto a União Europeia (que União?) prossegue as suas reuniões visando encontrar uma falsa solução para a crise que já se vive. O que importa é que pareça que se muda alguma coisa para que os interesses de sempre continuem na mesma assegurados e até reforçados.

Os offshores continuam impantes a esconder a evasão fiscal, a corrupção, a lavagem de dinheiro dos negócios mais sujos como o tráfico de armas, da droga, de seres e órgãos humanos. Há muitos anos que andam a mentir aos cidadãos que tudo será melhor com esto tipo de globalização que tem gerado milhões de deserdados.



O descrédito é enorme a desilusão também. Fervilham as tensões sociais. Alguma coisa vai acontecer.

 

Imagem – O Jardim das Delícias Terrenas – tríptico de Hieronymus Bosch.