O tema da habitação impõe-se invariavelmente nas conversas com amigos, nas redes sociais, na comunicação social, nas reuniões políticas. É difícil para muitos portugueses ter acesso a esse meio básico de vida, e não apenas para aquelas famílias identificadas como sendo economicamente carenciadas; também a classe média enfrenta dificuldades, devido ao desajustamento que existe no mercado entre oferta e procura, quer para quem pretende adquirir casa própria, quer para quem pretende arrendar.
[ imagem do Jornal Público ]
Para quem pretende comprar, esse desajustamento é visível em dois aspetos: na tipologia de habitação disponível e no valor de mercado, que é excessivo e especulativo, sobretudo se equacionados os rendimentos dos portugueses. A oferta existente é frequentemente dirigida aos apetecíveis setores de luxo e para estrangeiros, estes últimos com benefícios fiscais se mudarem a residência oficial para cá. Acresce ainda o apertar de critérios de financiamento da banca, pelo que apenas as famílias com salários muito acima da média têm acesso aos valores solicitados, que exigem uma taxa de esforço elevada.
Já no setor do arrendamento o panorama não é melhor. Portugal tem 450.000 habitações vagas e fora do mercado e 468.000 famílias a viver em habitações sobrelotadas e outras 8.000 famílias a viver em casebres improvisados, sendo que o inquérito, que o IHRU levou a cabo junto das autarquias em 2017, concluiu existir necessidade de 26.000 habitações no país. Isto num país que tem 700 mil famílias com rendimentos mensais brutos abaixo de 357€, cerca de 1,5 milhões de famílias com rendimentos abaixo de 715€ e cerca de 800 mil com rendimentos até 964€ mensais; ou seja, cerca de 3 milhões em 5,3 milhões de famílias (56,5%) tem rendimentos líquidos abaixo de 725€ mensais. Daqui resulta óbvio que o mercado não é solução para mais de metade dos portugueses.
É aqui que cabe invocar o primeiro direito garantido na Lei fundamental (artigo 65º), que refere incumbir ao Estado “promover, ... com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais”, “... uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto.” e ainda, “Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada”. No passado, uma importante intervenção do Estado foi o Programa Especial de Realojamento (PER) de 1993, destinado inicialmente a resolver o problema das barracas de Lisboa e Porto, mas que depois se estendeu a todo o país; já o PER Famílias disponibilizava recursos para que as famílias a realojar pudessem comprar fogos no mercado privado. Porém, a partir de 2002, o PER perdeu força devido ao limite de endividamento dos municípios, a que se seguiu mais tarde, a crise financeira e o tema da habitação saiu da agenda política dos governos e municípios; como consequência, muitas famílias ficaram de fora deste programa, o mesmo é dizer, sem habitação digna. Para se ter uma ideia da dimensão e importância do PER, foram eliminadas 48 mil barracas onde viviam 155 mil pessoas, das quais,13.408 barracas e 39.776 pessoas, na AMP. Também em Vila do Conde, o PER foi um instrumento de coesão social, tendo sido construídas 767 habitações.
Recentemente (2017) uma Resolução da Assembleia da República recomendou ao Governo que procedesse ao levantamento das necessidades de realojamento e proteção social em matéria de habitação, que avaliasse a execução do PER e que criasse um novo Programa Nacional de Realojamento para garantir o efetivo acesso ao direito à habitação. O relatório foi publicado em Fevereiro de 2018, assinala que o país necessita de 26.000 habitações e nele se lê que o município de Vila do Conde respondeu que não tem famílias a necessitar de serem realojadas.
Por sua vez, em resposta à Assembleia da República e a pedido de dois deputados do Bloco de Esquerda, a câmara de Vila do Conde fez saber que: “Não existe lista de espera para aceder a habitação municipal ”; “até 31/12/2019, para solicitar habitação, foram identificados 562 agregados familiares com carência habitacional “; “É registado (...) o número de famílias que se dirigem ao serviço para pedido de habitação (…) Este registo não origina lista de espera”; “no ano de 2017, foram colocadas a concurso 50 habitações (...) tendo ido a concurso 256 candidatos”; “o Município se encontra a elaborar a Estratégia Local de Habitação, neste momento não é possível identificar os investimentos futuros a realizar no domínio da reabilitação urbana de edifícios e de programas habitacionais.”
Apesar de terem ficado 206 famílias de fora do último concurso de atribuição de habitação social, e de haver registo de 562 famílias com carências habitacionais, estes factos não originam, da parte da Câmara de Vila do Conde, nenhuma ação. Seria de esperar que, apurada a existência de uma necessidade real, diligenciasse uma resposta de supressão da mesma, como lhe compete, nomeadamente integrar o novo Programa de Apoio ao Direito à Habitação, do governo da República.
Este executivo camarário, dirigido pelo movimento NAU, não tem uma Estratégia Local de Habitação, mesmo depois de ter sido a isso instado pelo governo; avançaram já 154 municípios, abrangendo 16.000 famílias. Nesta política pública, os vilacondenses não entram, por incompetência do executivo municipal, perdendo assim, talvez, a última oportunidade de ter acesso a uma habitação digna - o primeiro direito.