A tragédia que vitimou dezenas de animais num canil em Santo Tirso diz muito sobre a sociedade que somos.
O desinteresse, ou mesmo o desprezo pelo sofrimento dos outros acontece entre humanos. São conhecidas formas vis de exploração, tráfico de seres humanos, genocídios, até aos dias de hoje.
O facto de ser assim entre humanos não nos pode levar a desvalorizar o que sucedeu no abrigo (?) para animais em Santo Tirso com o aconchegado nome de “Cantinho das Quatro Patas”.
Se é verdade que têm que ser apuradas as razões e os responsáveis que terão impedido o auxílio aos animais que morreram carbonizados ou foram feridos no incêndio que lavrou na serra da Agrela, o que é preciso é atentar nas condições em que, um pouco por todo o país, os animais são tratados.
O cuidado a ter com os animais é menosprezado, não é tido em conta o sofrimento que lhes causa os maus tratos, o abandono ou cuidados negligentes. São muitos, mesmo muitos os animais (cães, gatos, por exemplo) que sendo adoptados são tratados como coisas, abandonados à primeira contrariedade, acorrentados em locais sem condições de habitabilidade, isolados e sofrendo com todo o tipo de intempéries.
Adoptar um animal exige responsabilidade, carinho, amor e tem os seus custos – alimentação, cuidados veterinários – e disponibilidade para os acolher e tratar como um elemento mais, e dos mais frágeis, da nossa família. Ora, é exactamente isto que falha.
Mas se isto falha em muitos casos ao nível da nossa responsabilidade individual o que dizer da falta de políticas publicas que previnam e reprimam estas situações?
As diversas autoridades, começando pelas autarquias, fingem não ver os inúmeros canis e gatis ilegais existentes. Os serviços veterinários municipais não cuidam de saber em que condições estes funcionam. As autarquias têm dificultado o licenciamento destes equipamentos, desprezando ainda as suas funções fiscalizadoras. Enquanto não há tragédias continuam a assobiar para o lado.
Na nossa sociedade há muito quem ache que os animais não são sensíveis à dor e ao sofrimento. Exemplo disto, entre outros, é a discussão sobra as touradas em que muito boa gente afirma que o touro não sofre nem sente dor com o flagelo a que o sujeitam.
É preciso entender, sem populismos ou demagogia, que mesmo o abate de animais para alimentação dos humanos deve ocorrer num contexto em que o sofrimento infligido deve ser minorado evitando sofrimento desnecessário.
Muitos países, entre os quais Portugal, já consideram os animais seres sencientes. “Dizer que os animais são sencientes é afirmar explicitamente que eles podem experimentar emoções positivas e negativas, incluindo dor e angústia ” como afirma Virginia Williams, presidente da Comitê Consultivo Nacional de Ética Animal.
Este reconhecimento devia implicar novas políticas de bem-estar animal com práticas adequadas, acções de formação, divulgação e sensibilização de todos. Sem a plena assunção pela sociedade de que os animais são seres sencientes e que, como tal, têm direito ao seu bem-estar num planeta que deve ser de todos, não será possível alterar significativamente a situação.
Políticas públicas que concretizem os propósitos tantas vezes enunciados mas não concretizados é uma exigência primordial numa sociedade democrática. Políticas públicas que dêem o exemplo pelos valores humanitários que prosseguem, desencorajem os infractores e previnam situações catastróficas como as de Santo Tirso. É que a catástrofe como a que ocorreu choca mas com o tempo se esquece até uma próxima. Entretanto, no intervalo das catástrofes, prossegue o sofrimento dos animais, nossos amigos.
Foto – o meu amigo Gaspar.