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Ao contrário de Ramalho Eanes

Eanes, militar, está com 85 anos de uma vida muito única, talvez se apazigue com o que construiu e se sinta pleno para aceitar um fim. Contudo, existe um estigma inaceitável a ser criado com a passagem despreparada desta ideia. Ninguém pode entrar num hospital imediatamente derrotado pela obrigação de abdicar de um tratamento. Não pode haver culpa em querer viver. Simplesmente, não é suportável culpabilizar a legítima vontade de viver.

Começamos pelo desafio de se definir quem são os velhos. Sabemos que a Itália e a Espanha descem constantemente a idade a partir da qual os médicos recusam os ventiladores. Por outro lado, com rigor, a vida não se conta pelo tempo. Há uma maturação a que somos sujeitos em ritmos muito desencontrados, e alguém com 80 anos pode ainda urgir incompleto. Certamente terá que ver com a capacidade para a paz, um equilíbrio entre quem se é e se gostaria de ser, entre o que se tem e o que sempre se quis ter. Um jovem poderá ser menos assombrado pela real hipótese da morte do que muitos velhos.

Seria um horror convencer os velhos de uma coisa destas. O que isto denuncia não é tanto a heroicidade de alguns, é antes a desfaçatez de um mundo que desinvestiu nos serviços públicos de saúde e que hoje pede ao cidadão a mais obscena condição de mártir. Um mártir por um capitalismo que fez quanto pôde para desviar a saúde para o universo privado, sustentada em planos de seguros que simplesmente não prestam nunca o serviço que um Estado presta.

Como disse, também me pode enternecer que alguém decida em favor da vida de outrem, mas a morte não pode ter norma na comunidade exterior ao hospital. O nosso esforço tem de ser ao contrário. Esperando que todos se salvem. A idade, para isto, tem de ser uma coisa íntima. Só o direito absoluto à vida haverá de ser pressuposto público. O resto é falha, derrocada, algo que não quereremos nunca conceber.

Sinceramente, espero que os velhos que amo não tenham ouvido Ramalho Eanes, para que em instante algum se sintam obrigados a uma decisão que, se competir a alguém, deve competir aos médicos, em quem nos resta depositar a mais sincera fé. E que se robusteçam de esperança. Cerca de 90% recuperam. O que queremos são melhores condições para que ainda mais gente recupere. Esse tem de ser o sentido de todos os desejos. Aí é que veremos os heróis que queremos ver.

Escritor

publicado no JN de 5 de Abril