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Violência Doméstica – O Lastro

Já todos nos apercebemos como as vítimas são desconsideradas, desrespeitadas e como as suas queixas são muitas vezes desvalorizadas quer pelas polícias, quer pelos tribunais.

O teor das famigeradas sentenças do Juiz Neto de Moura são só uma pequena amostra da realidade que desculpabiliza os agressores e quase sempre encontra culpas que de algum modo responsabilizam as vítimas. Por outro lado, isto evidencia o quanto se tem que avançar no combate à desigualdade de género e no modo como a sociedade em geral olha para esta criminosa violência.

Os mais recentes casos de violência doméstica, os números desconcertantes de 583 mulheres mortas entre 2004 e 2018. As 28 mulheres mortas em 2018 e as já 9 mortas no presente ano de 2019 trouxeram-me à memória uma conversa que presenciei numa viagem de metro, no Grande Porto, há dois ou três anos.

Não pude deixar de ouvir a conversa que se desenrolou mesmo ao meu lado. Uma mulher jovem, teria pouco mais de quarenta anos, dizia aos seus parceiros de viagem, com um certo orgulho, que o filho já andava na faculdade e com um brilhante desempenho escolar. Até aqui tudo bem. Depois acrescentou que ele era um “conquistador” e que tinha as raparigas que queria. Disse ainda que às vezes aceitava que as namoradas do filho pernoitassem em sua casa e que só lhe dizia para ter juízo e não se deixar agarrar. Esta mãe continuou dizendo que o filho era esperto e que ora andava com uma, ora com outra rapariga e que acabava por as despachar a todas. Rematou a conversa dizendo que elas é que não tinham juízo nenhum e que eram umas doidas varridas que o seduziam.

Esta conversa, em minha opinião, mostra bem o lastro machista ancestral que está gravado nas nossas mentes, nas nossas almas e que de algum modo mostra como é ingente a tarefa que temos pela frente para vencer estereótipos, preconceitos velhos, mas entranhados e que há muito julgávamos ultrapassados.

Uma amiga minha que me acompanhava nesta viagem, mãe de uma jovem rapariga, olhou para mim e ambos encolhemos ombros. Estive para intervir na conversa, mas confesso que muitas vezes, mais do que desejávamos, a realidade acaba por nos esmagar e pior, acaba por nos inibir.

 

[artigo originariamente publicado em "O Navio de Espelhos"]